Teórico, prático e criativo
Giulio Carlo Argan - 09.Jun.2003
Walter Gropius é um homem do primeiro pós-guerra. Sua obra de arquiteto, de teórico, de organizador e diretor daquela admirável escola de arte que foi a Bauhaus é inseparável da condição histórica da república de Weimar e da frágil democracia alemã.
Gropius investiu toda a sua cultura figurativa e teórica, assim como seu destino de artista, naquele momento crítico da história européia. Sua racionalidade, sua positividade e até mesmo seu otimismo ao desenhar programas de reconstrução social brilham sobre o fundo sombrio da derrota alemã e da angústia do pós-guerra: sua fé num melhor futuro para o mundo esconde um profundo ceticismo, um lúcido desespero. Não se tratava apenas de uma defesa psicológica e moral: aquele supremo prestígio da razão era também a última herança da grande cultura alemã, a única força de resgate que a Alemanha podia extrair do próprio passado. A obra de Gropius se enquadra na crise dos grandes ideais que caracteriza a cultura alemã deste século; nasce, também ela, da desagregação sofrida pelos grandes sistemas e da confiança depositada numa crítica construtiva, capaz de apresentar e resolver os problemas imediatos da existência. A racionalidade que Gropius desenvolve nos processos formais da arte é consentânea com a dialética da filosofia fenomenológica e existencial (sobretudo a de Husserl), à qual de fato está ligada historicamente: em substância, trata-se de deduzir, da pura estrutura lógica do pensamento, determinações formais de validade imediata, independentes de toda Weltanschauung. Em sua obra, o rigor lógico adquire evidência formal: torna-se arquitetura, como condição direta da existência humana.
Na história de Gropius, é impossível separar o momento teórico do momento criativo ou do momento pedagógico: cada um de seus edifícios, de seus programas urbanísticos, cada uma de suas intervenções práticas e polêmicas, por uma radical renovação dos métodos produtivos da arquitetura e da arte aplicada ou por uma reforma do ensino formal, é ao mesmo tempo formulação teórica, aplicação prática e ato criativo. Ele é um temperamento positivo – extrovertido, dir-se-ia hoje –, que deseja agir a qualquer custo sobre o terreno concreto do contingente. Sabe que, na crise dos grandes valores da história, a estrita lógica formal encontra força de ultima ratio; e se já não é possível nenhuma civilização baseada em princípios estáveis, mas somente na clareza e na firmeza dos atos, seu propósito é o de atuar no cerne de uma situação com a tempestividade e a exatidão de uma intervenção cirúrgica. A racionalidade já não é um guia ou uma luz vinda do alto, mas uma técnica infalível; a condição que a determina e justifica é a constatação da crise, que é sobretudo a crise do sentimento; daí a contínua transição do puro racionalismo ao puro pragmatismo, a substancial identidade entre processo artístico e processo crítico, entre atividade criativa e atividade didática. Deve-se provavelmente a essa contínua transição o fato de a obra de Gropius, interrompida na Alemanha pelo advento do nazismo, ter podido desenvolver-se coerentemente na América e encontrar pontos de contato com o pensamento de um Dewey ou de um Forbes: ampliando assim, ilimitadamente, o horizonte histórico da arte contemporânea.
Em Gropius, levado por sua formação de arquiteto a considerar problemas sociais concretos, a dualidade entre pragmatismo e racionalismo reproduz, em outro plano, a contradição entre nacionalismo e internacionalismo que, naquele imediato pós-guerra, angustiava toda a cultura européia. Em torno desse ponto gravita toda a sua obra: a arquitetura “internacional” não será apenas um nivelamento das técnicas e das formas, mas também, ao mesmo tempo, o instrumento e a imagem de uma nova organização social. Desta, não é possível prever sequer a estrutura geral; a própria arte, agindo e desenvolvendo-se no âmago da sociedade e participando de seu devir, concorrerá para determiná-la.
Na França como na Alemanha, embora com ênfases diferentes, sempre que se falava de internacionalismo pensava-se, na realidade, numa nação supra-histórica ou coletiva, a “nação européia”, a ser contraposta à ameaça da internacional classista. De igual modo, sempre que se falava de racionalismo, a propósito das inevitáveis questões sociais da arquitetura, na realidade pensava-se num pragmatismo generalizado e normativo (ou, falando de utilitarismo, numa racionalidade em ato), a ser contraposto à dramática concretude dos problemas sociais. O dualismo não exprimia o contraste histórico de ideologias e de classes, que se vinha exasperando a cada dia, mas o mal-estar e as contradições internas da classe dirigente: era seu álibi teórico diante da pressão de outras forças que, da extrema esquerda e da extrema direita, visavam o poder alegando respectivamente um programa internacionalista e um programa nacionalista extremado.
Não há dúvida de que Gropius atuou no âmbito de uma cultura burguesa e de que seu imperativo racional o impediu de um efetivo ímpeto revolucionário. Seu lugar está naquela fileira de intelectuais que se empenharam em resolver racionalmente os conflitos de classe: com eles, Gropius assistiu ao desabamento que levou de roldão, além da frágil base da cooperação intelectual entre os povos, os “eternos valores” aos quais essa cultura estivera inutilmente ancorada.
Alguma coisa, contudo, excetua a figura de Gropius dentro do coro dos “europeístas”: antes de tudo, sua incapacidade de ilusão e sua fria recusa a fundamentar a nova comunidade sobre o prestígio dos “grandes ideais”. Na verdade, esses grandes ideais constituíam o sistema que sua dialética desintegrava e dissolvia na fenomenologia da existência, ainda que essa mesma dialética os pressupusesse, do mesmo modo como as filosofias existenciais traziam à sua própria dialética a experiência do idealismo que criticavam como sistema.
Gropius constata que aqueles grandes ideais e aqueles supremos valores deixaram de existir com uma determinada estrutura da sociedade; admite que a crise da sociedade é também a crise da arte; quer estabelecer qual pode ser a função da arte, como inalienável “experiência artística”, no iminente processo de transformação da sociedade. Seu limite foi o de ter acreditado que essa transformação pudesse reduzir-se a uma evolução histórica da atual classe dirigente, a fim de adequar-se a novas tarefas sociais.
Giulio Carlo Argan (1909-1992) foi um dos maiores historiadores de arte e arquitetura do mundo. Em “Walter Gropius e a Bauhaus”, que a editora Jose Olympio publicará em setembro, com tradução de Joana Angélica d’Avila Melo, Argan faz um vasto estudo sobre o genial arquiteto alemão que revolucionou a arquitetura e a arte. Além de historiador, Argan foi prefeito de Roma pelo Partido Comunista (de 1976 a 1979) e mais tarde senador. Durante 20 anos manteve ativa correspondência com Gropius.
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