Os artistas, a cigarra e a formiga

No Dia Mundial do Trabalho, os artistas baianos reivindicam o merecido título de "trabalhadores da arte" e exigem respeito
Para falar de seu sentimento em relação ao Dia do Trabalho, o cineasta Edgard Navarro (autor do média O Superoutro e do longa Eu Me Lembro, em fase de finalização) adapta para a vida real a fábula da cigarra e a formiga. "É uma história que tem dois finais: o da formiga boa e o da ruim. Enquanto a formiga má deixa a cigarra morrer de fome e frio no inverno, a boa a acolhe, achando que o inseto merecia, de alguma forma, participar do fruto de seu trabalho, por haver alegrado sua labuta durante o verão".
Mas, a visão da formiga má é o ponto de vista da maioria dos ditos "trabalhadores formais", quando o assunto é a classe artística. Associados historicamente com preguiçosos e prostitutas, os artistas reividicam um lugar ao sol do 1º de maio, na condição de profissionais que merecem respeito.
"Se os setores da sociedade entendessem a necessidade do canto da cigarra, ou seja, do trabalho artístico, a nossa fábula/vida teria um final feliz", resume o cineasta, 27 anos de cinema – e de ser chamado de "vagabundo".
PRECONCEITO E SUSTENTO - A discriminação é a queixa geral, e o preconceito desdobra o assunto em várias implicações. Uma delas é a necessidade de o artista ter outra profissão para sustentar a arte. "Sou escritor, poeta, contista, cronista e... advogado", diz o premiado escritor Cyro de Mattos, 64 anos, 24 livros publicados. "E é o advogado que sustenta o escritor", lamenta.
Outra conseqüência é a falta de respeito dentro do mercado de trabalho artístico que, muitas vezes, parte até da postura do próprio artista, fruto da baixa auto-estima adquirida após anos e anos de convencimento de que o seu modo de trabalho não é, na verdade, um trabalho.
"A classe é desunida", ecoam Navarro, o artista plástico Juarez Paraíso e Cyro. O escritor é ainda mais contundente. "Não existe consciência de classe, e, portanto, não há mobilização". Para Juarez, há uma apatia geral.
"O artista deveria ser mais politizado e perceber que não se pode mais sobreviver poeticamente", conclamou. "Temos que nos sindicalizar, criar meios de lutar política e socialmente".
TRABALHO DURO - O ator Agnaldo Lopes, 50, 32 anos de palco, que tem significativa atuação nas áreas de teatro (Boca de Ouro, Idiotas Que Falam Outra Língua), cinema de longa-metragem (Meteoro, São Francisco Um Rio Cheio de Histórias) e curta (História de Pescador, Cega Seca, O Ponto), além de televisão (Danada de Sabida, A Maldita, O Compadre de Ogum), acredita que artista não é visto como um trabalhador porque não tem grande influência nas decisões do mercado financeiro.
"As pessoas consideram o nosso poder de barganha, nessa área, limitado. Na opinião delas, tanto faz para a economia se nós cruzarmos os braços", diz. "Isso sem contar que as pessoas acham a arte uma diversão tanto para quem assiste como para quem faz".
"Ninguém imagina que o artista trabalha duro", diz Lopes, com conhecimento de causa: ele trabalha cerca de 12 horas por dia com teatro, de domingo a domingo, dirigindo, escrevendo e atuando. "Temos responsabilidades, pagar contas, mas somos tratados como pessoas sem necessidades, que não pisam no chão. Até o ingresso para nossos espetáculos é constantemente solicitado de graça, quando ninguém pede a um médico ou dentista uma consulta grátis", desabafa.
Lopes pontua, também, que o positivo do trabalho do artista é que ele utiliza uma ferramenta fundamental no mercado: a criatividade. "Isso faz com que, cada vez mais, novas portas se abram. Hoje, por exemplo o artista atua em empresas, hospitais, escolas, shoppings e até no futebol", diz Lopes, um pioneiro no desenvolvimento do teatro nesta área.
Mais um indício de que a classe está tomando consciência de sua força de trabalho é o fato de o artista, atualmente, gerir sua carreira, criar oportunidades e não ficar só esperando ser chamado. Além disso, são cuidadosos com o marketing pessoal. "Acabou aquela história do ator descuidado, com roupas rasgadas. Somos cada vez mais profissionais".
CHECCUCCI - O diretor teatral Deolindo Checcucci (O Vôo da Asa Branca), 33 anos na área, onde atua como autor, diretor e produtor, frisa que em geral as pessoas associam trabalho a assinar o ponto, cumprir jornada de trabalho e exercer determinada função, como em uma empresa, por exemplo.
"O artista foge dessa regra. Ele não exerce uma função mecanicamente ou pensando apenas em cumprir um ritual. Pelo contrário, busca novas formas de expressão, tendo sempre em vista que a sociedade precisa repensar sua existência. Ele cria o seu próprio processo de trabalho". Deolindo acha que as pessoas não conseguem enxergar isso e têm preconceito, porque o artista não tem salário e renda fixa.
Checcucci é categórico: "O artista trabalha em dobro, pois se prepara para a função que exerce utilizando um grande tempo. E muitas vezes investe de seu mesmo bolso, para que o produto chegue ao mercado".
BANDEIRA - Constatadas as injustiças, os artistas levantam bandeiras para mudar este quadro. O escritor Cyro de Mattos aponta a necessidade de um respaldo do governo federal para desenvolver suas atividades. "O escritor não vive do que produz, salvo algumas exceções, e nem está relacionado no INSS. Poderia haver leis que, por exemplo, obrigassem a indicação de 10 escritores baianos para terem seus livros adotados em vestibulares. Isso fortaleceria o nosso mercado", comenta.
O artista plástico Juarez Paraíso se indigna com a falta de uma legislação que contemple, de forma justa, as artes em geral. "As leis, em relação aos trabalhadores das artes, são de uma injustiça incrível e de uma imensa ignorância. Para se ter uma idéia, a única profissão que ainda não foi regulamentada é a de artista plástico. Até as prostitutas já foram", reclama.
Já Navarro desfralda a bandeira branca e pede tolerância. "As pessoas não entendem que você, artista, acorda tarde e vai à praia durante a semana porque teve um turno de 15 horas, dando virote para aprontar um trabalho. Ao invés disso, o vizinho te olha como vagabundo, o sujeito que não tem horários nem profissão. Nosso trabalho é insano e o que queremos é um pouco de respeito".
CANTOR E CHAVEIRO - Vida difícil, por isso, a da maioria dos músicos que tocam nas noites e espaços de lazer de Salvador. Além do mercado cada vez mais reduzido, que fecha as portas para a tradição popular da música de barzinho,laboratório para grandes artistas nacionais, a exemplo de Djavan e João Bosco, em início de carreira, ganha-se muito pouco pelo trabalho, que, não raramente, é discriminado.
O baiano Ariosvaldo Jorge de Queiroz Santos (39), o Carcará, depois de 20 anos na estrada, cantando e compondo, sem conseguir lugar ao sol, atualmente, trabalha como chaveiro para sustentar a vida de músico. "Acho que a gente só faz por prazer e na esperança de que algum dia surja uma grande oportunidade".
Com uma apresentação marcada para este sábado à noite, no Pelô, Carcará mostra, em duas horas de show, o que apurou em anos de dedicação e trabalho. O desrespeito de que diz ser vítima se reflete no que recebe por apresentação: "Quando a casa não tem público, o dono, esperto, quer pagar por couvert; quando tem, só paga por cachê", explica.
Daniel Dantas, 28, há três anos tocando regularmente na noite, diz que o pagamento oscila entre R$ 20 e R$ 100. "Sinto falta de uma regulamentação para a profissão. Hoje, quase ninguém trabalha com cachê fixo. Nós ficamos à mercê do esquema dos bares e restaurantes". Como paliativo, Daniel sugere a parceria entre músicos e donos de estabelecimentos: o artista entra com o som, a voz, o violão e todo o talento e espera para ver no que vai dar.
Mesmo com tantos empecilhos, o pessoal não consegue largar de mão a vida musical, que, segundo Daniel, "é um caminho sem volta". Hoje, em pleno Dia do Trabalho, enquanto todos aproveitam o feriado, ele, com toda a dignidade, vai trabalhar: apresenta-se para o público do Café Quereres (Pelourinho), às 22 horas, ao lado da cantora Ivana Dantas.
(fonte: A Tarde - Caderno 2 - 01/05/2003)
Ceci Alves, Eduarda Uzêda e Luciano Aguiar
