A mulher do fundo do mar
Encontrei imensa dificuldade de acreditar no que estava acontecendo diante de meus olhos. Fosse cinema e eu cogitaria a possibilidade de uma falha ainda maior que a da média humana para reter a luz dos fotogramas em movimento. Mas não. Era teatro. Eu podia tocar, se quisesse, o cenário, a atriz, a areia, que me fez lembrar uma das tantas decorações temáticas e patéticas do restaurante Coco Bambu.
O texto de Aldri Anunciação não é só impublicável, como diriam escritores, leitores e editores: é indizível, como diriam os repentistas. Afronta a inteligência e uma tradição milenar de oralidade. Em sua pretensão de soar filosófico – seguindo as pegadas do Existencialismo, a mais "fácil" das filosofias, quando não se leu Kierkegaard direito, tampouco Sartre, mas Clarice Lispector e Augusto Cury –, o dramaturgo – que também assina a lastimável direção do espetáculo – cai em clichês os mais puídos, e fez como que uma leitura da diarreia de Bauman, sociólogo – por apedeutas considerado filósofo – queridinho dos que não conseguem ler Adorno e toda a Escola de Frankfurt e dos que desejam ler tudo aquilo que já encontramos no azul que tá no frevo.
É daí que vemos uma declinação enfadonha de críticas aos valores da pós-modernidade em uma Cuba submersa, com máquina de escrever enferrujada – tão óbvios os signos usados no espetáculo –, mesa de madeira avariada e um fundo côncavo, um paredão de uns dois metros de altura por cinco de largura sobre o qual são feitas projeções – parece não haver mais peça de teatro sem uma dramaturgia eficiente que não apele para um "cinerama" veloz e barulhento, algo que nasce justamente dessa tão criticada pós-modernidade, sociedade do espetáculo, consumismo, modernidade líquida e outras baboseiras cantadas pela turma que até hoje espera ver Cuba lançar, mesmo depois de finda a União Soviética – de imagens caóticas, absolutamente "fáceis", previsíveis, entediantes.
A mulher do fundo do mar conta a história de uma mulher que, voluntaria ou involuntariamente, afasta-se da sociedade, ou da civilização e de seu mal-estar, ou do tempo-espaço dos smartphones. Tal misantropia não parece lhe fazer bem, e daí nasce um conflito que prometia salvar a peça. Mas só prometia.
Porque o que fica, o que não salva, o bote salva-vidas furado é uma peça com um texto cheio de afirmações e sugestões do mais rasteiro e maniqueísta dos pensamentos, com metáforas gastas – a personagem se refere ao mundo lá fora (ou lá de cima) como "a terra firme das convicções" –, e uma tentativa, presunçosa, de entrar "nas mentes" com uma sabedoria de guru oriental picareta do tipo Sai Baba (em um dado momento a personagem pontifica, em tom professoral, a respeito da relação com o outro, alteridade etc., não sem jamais se livrar do senso comum – o senso comum de Paripe). Some-se a isso um figurino e uma coleção de movimentos que expõem a talentosa e experiente atriz baiana Iami Rebouças ao ridículo, nessa altura do campeonato da pré-terceira idade, e ainda uma nonada e outra que não conduz o drama a lugar algum, e o leitor poderá vislumbrar o que presenciei, por cerca de uma hora e vinte, boquiaberto, no fundo de um mar que não se impõe com o mínimo de verossimilhança que pudesse estimular o público a, por meio da técnica do suspension of disbelief, entrar no jogo proposto pelo dramaturgo e encenador baiano que se notabilizou com o espetáculo "Namíbia, não!".
Restou-me agradecer a generosidade de Aldri Anunciação para com seu público, dessa vez, ao não enfiar no texto frases em alemão, ditadas por ele, com o intuito de fazer valer os anos de estudo do idioma, e ainda com o propósito, provinciano, do épater le bourgeois.
A mulher do fundo do mar, com sua profundidade de pires, passa a figurar em minha lista dos piores espetáculos de teatro realizados na Bahia nos últimos dez anos. E fica perto do primeiro da lista. Ali, na superfície.
Henrique Wagner